"Existe o certo, o errado e todo o resto". Esta é
uma frase dita pelo ator Daniel Oliveira vivendo Cazuza, em conversa com o pai,
numa cena que, a meu ver, resume o espírito do filme dirigido por Sandra
Werneck e Walter Carvalho. Aliás, resume a vida.
Certo e errado são convenções que se confirmam com meia
dúzia de atitudes. Certo é ser gentil, respeitar os mais velhos, seguir uma
dieta balanceada, dormir oito horas por dia, lembrar-se dos aniversários,
trabalhar, estudar, casar-se e ter filhos, certo é morrer bem velho e com o
dever cumprido. Errado é dar calote, rodar de ano, beber demais, fumar, se
drogar, não programar um futuro decente, dar saltos sem rede. Todo mundo de
acordo?
Todo mundo teoricamente de acordo, porém a vida não é feita
de teorias. E o resto? E tudo aquilo que a gente mal consegue verbalizar, de
tão intenso? Desejos, impulsos, fantasias, emoções. Ora, meia dúzia de normas
preestabelecidas não dão conta do recado. Impossível enquadrar o que lateja, o
que arde, o que grita dentro de nós.
Somos maduros e ao mesmo tempo infantis, por trás do nosso
autocontrole há um desespero infernal. Possuímos uma criatividade insuspeita:
inventamos músicas, amores e problemas, e somos curiosos, queremos espiar pelo
buraco da fechadura do mundo para descobrir o que não nos contaram. Todo o
resto.
O amor é certo, o ódio é errado e o resto é uma montanha de
outros sentimentos, uma solidão gigantesca, muita confusão, desassossego,
saudades cortantes, necessidade de afeto e urgências sexuais que não se adaptam
às regras do bom comportamento. Há bilhetes guardados no fundo das gavetas que
contariam outra versão da nossa história, caso viessem a público.
Todo o resto é o que nos assombra: as escolhas
não feitas, os beijos não dados, as decisões não tomadas, os mandamentos a que
não obedecemos, ou a que obedecemos bem demais - a troco de que fomos tão bonzinhos?
Há o certo, o errado e aquilo que nos dá medo, que nos
atrai, que nos sufoca, que nos entorpece. O certo é ser magro, bonito, rico e
educado, o errado é ser gordo, feio, pobre e analfabeto, e o resto nada tem a
ver com estes reducionismos: é nossa fome por ideias novas, é nosso rosto que
se transforma com o tempo, são nossas cicatrizes de estimação, nossos erros e
desilusões.
Todo o resto é muito mais vasto. É nossa porra-louquice,
nossa ausência de certezas, nossos silêncios inquisidores, a pureza e a
inocência que se mantêm vivas dentro de nós mas que ninguém percebe, só porque
crescemos. A maturidade é um álibi frágil. Seguimos com uma alma de criança que
finge saber direitinho tudo o que deve ser feito, mas que no fundo entende
muito pouco sobre as engrenagens do mundo. Todo o resto é tudo que ninguém
aplaude e ninguém vaia, porque ninguém vê.
Texto por Martha Medeiros